O próximo número dos Cadernos Benjaminianos, publicação da Faculdade de Letras da UFMG, trará um dossiê bastante completo sobre a obra de W. G. Sebald. Até onde sabemos, será a primeira publicação do tipo no Brasil. Organizado pelos queridos colegas Kelvin Falcão Klein (UNI-RIO) e Maria Aparecida Barbosa (UFSC), o dossiê contém textos de pesquisadores brasileiros e estrangeiros, todos até agora inéditos no país. Dentre eles, publico a pequena resenha que segue, dedicada a pensar um livro pouco conhecido de poemas do autor, Unerzählt (Nã0-contado). Aos interessados, o texto:

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à travers une brèche d’incompréhension:

sobre Unerzählt, de W. G. Sebald          

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Unerzählt (Por contar, conforme a tradução portuguesa de João Barrento, ou Não-contado, na versão brasileira de Tercio Redondo) é um livro de poemas de W. G. Sebald lançado, depois do desaparecimento trágico do autor, em 2003. Constituído por uma série 34 poemas curtos, todos eles estão acompanhados por igual número de gravuras, de um realismo tão impressionante quanto incômodo, do pintor Jan Peter Tripp, representando apenas olhos, pares de olhos que se dirigem, direta ou indiretamente, ao leitor. A combinação dos dois registros, como sempre ocorre na obra do escritor, desperta um misto de fascínio e inquietação: inquirido obliquamente, o observador dessas imagens e desses textos projeta-se diretamente no mundo dos afetos daquelas figuras retratadas: a serenidade, o horror, a doçura, o vazio mesmo dos olhos que mal veem (ou já não veem nada, como talvez fosse o caso de Jorge Luís Borges, um dos personagens, por assim dizer, do livro) são imediatamente experimentados, numa forma curiosa, certamente ampliada, de endereçamento e partilha. Antes de entender a operação intelectual que tem diante de si, o leitor é solicitado, como que observado também, num jogo de espelhos que potencializa os efeitos simultâneos de reconhecimento e estranhamento que o conjunto vai suscitar. Some-se a isso, evidentemente, o corpo mesmo dos poemas, textos invariavelmente enigmáticos, muitos de forte teor melancólico, que parecem às vezes confirmar uma levíssima sugestão da imagem, quase que só um sussurro breve que o texto mais inventa e revela do que propriamente traduz; e outras tantas vezes os poemas tendem a entrar em franca dissonância com ela, num descompasso produtivo, que confere aos dois polos uma maior tensão, trazendo à tona aspectos insuspeitos da proposta armada por Não-contado.

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Veja-se, ainda que precariamente – posto que não será possível recuperar, no espaço deste texto, a riqueza de nuances, as linhas e sombras, a materialidade mesma dos traços de Tripp – um exemplo de cada um desses efeitos, aproximação (relativa) e diferença: o primeiro conjunto traz os olhos fixos, algo aflitos, estáveis mas com uma sombra indisfarçável de apreensão e gravidade, do pintor Francis Bacon; acompanhando-os, os versos que dizem (em tradução livre):

Em 8 de maio de 1927

os pilotos

Nungesser e Coli

decolaram de Le Bourget

e depois disso

nunca mais

foram vistos

(SEBALD, 2004, p. 33)

A desaparição dos aviadores, descrita aqui como uma tragédia em miniatura para qual não há explicação nenhuma, apenas a ausência completa, é apresentada pelo poema sem alardes, numa linguagem descarnada, sem adjetivos, que replica no texto a falta de entendimento possível da morte, que surge e se instala tantas vezes sem ruído, sem espalhafato. O tom melancólico do trecho se faz presente pela duração, por assim dizer, do evento: mesmo se a morte é certa, como racionalmente somos levados a entender, a sugestão de uma cena em movimento, como que ainda acontecendo, confere o tempo longo e lento, irremissível, característico dessa constelação afetiva. A ausência dos cadáveres e, por extensão, dos rituais públicos do luto, também são parte do processo: o olhar desolado de Bacon, a angústia concentrada que parece se guardar dentro dele coloca em pauta o desgaste de uma busca sem solução, o peso de uma certeza terrível que se instala mas não tem para onde ir. Ainda que não haja continuidade formal de qualquer natureza, os sentidos de uma linguagem repercutem na outra, multiplicando-se em solidariedade. Por outro lado, e em chave bastante diversa, tome-se o segundo poema do livro, citado a partir da tradução que dele fez Tercio Redondo:

As manchas

vermelhas

no

planeta

Júpiter

são

furacões

de

trezentos anos

(SEBALD, 2004, p. 21)

A imagem que lhe vai como par representa os olhos do escritor espanhol Javier Marías:

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Javier Marías
trata-se de um olhar claro, quase se poderia dizer neutro –fundamentalmente uma mirada calma, sem a urgência ou o fechamento em si (o mistério) que várias outras gravuras de Unerzählt. A sensação é a de um descolamento maior entre a imagem e o texto: a sugestão da violência e do desconhecimento oferecidos pelo poema não se confirmam na expressão dos olhos, no traço obscuro, mas ainda assim tranquilo, do artista. A beleza da fotografias espaciais que retratam Júpiter, o maior dos planetas do Sistema Solar, parece esconder alguma coisa desestabilizadora – eis o que poema nos informa – a força bruta de um turbilhão contínuo, fenômeno quase inimaginável na diminuta escala humana. Nada mais distante dos olhos estáticos e firmes de Marías, que se não sorriem também não são símiles da instabilidade e da derrisão.

w-g-sebald

Apesar das diferenças em jogo, Não-contado continua e aprofunda alguns dos elementos fundamentais, alguns dos procedimentos mais marcantes da restante obra literária do autor. A mistura inextricável entre texto e imagem, a presença densa da melancolia, o gesto ao mesmo tempo biográfico e autobiográfico – escrita que sempre se faz a partir de algum tipo de registro da vida do outro e de si, em franca conexão. Se não estão presentes o tom ensaístico e as grandes narrativas tecidas por Sebald em seus demais livros (mesmo nos poemas de Nach der Natur [Do natural, ainda sem tradução no Brasil], no fundo intrincados relatos atravessados pelo elemento lírico), neste conjunto de pequenos textos comparecem versos e frases lapidares, verdadeiro exercício de condensação no qual é possível perceber às vezes a ponta de dramas complexos, o corpo de narrativas em potencial que ficam assim, como território afetivo e convite à imaginação. Não será gratuito, nesse sentido, o título escolhido para o livro, Unerzählt: conforme a melhor indicação de seu sentido em português, feita por João Barrento (Por contar), há nele a promessa de circunstâncias a revelar, de fatos a vir à tona. Cada par de olhos (no fundo, portanto, cada vida individual, uma vez que a expressão e o contorno dos olhos são sempre distintos, inconfundíveis) guarda uma intrincada trama de experiências, lembrando a infinidade de universos – banais ou sofisticados – que existem, silenciosos, à volta de qualquer um. Nos olhos da própria filha, Anna Sebald – ela também retratada por Jan Peter Tripp no penúltimo dos textos do livro – o escritor vai localizar esse suplemento não-reivindicado de vida, essa indicação de uma narrativa (presumivelmente triste, como o olhar da moça aparenta ser) que resta:

                                         Por contar

                                                fica a história

                                                dos rostos que

                                                desviam o olhar

                                                (SEBALD, 2004, p. 81)

A tradução de Barrento acentua, como se pode notar, o aspecto fantasmático que também atravessa o projeto de Unerzählt. Os que ‘desviam o olhar’ existem anônimos e quase que sem vida, esquecidos pelo mundo, em certo sentido, mas lembrados tanto pelo poeta como pelo pintor, que se interessam, como nos seus outros livros e obras plásticas é possível perceber, por sujeitos invisíveis, por fotografias e objetos já sem uso, por aqueles, enfim, que existem fragilmente. Infelizmente inédito no Brasil, ao que tudo indica por desinteresse editorial mais do que por eventuais dificuldades com o espólio do escritor, Não-contado dá testemunho da força criativa de Sebald, servindo como síntese de procedimentos e expansão das possibilidades que seus demais trabalhos (ficcionais, ensaísticos, poéticos) guardam. O livro como que procura dar testemunho ainda do profundo desencontro que pode mediar a experiência da visão: assim como o escritor lembra, nas páginas finais do seu romance Austerlitz (2001), que os homens e os animais enjaulados parecem sempre se olhar ‘por meio de uma fresta de incompreensão’, nunca conseguindo reconhecer plenamente a vida e o espaço comum que partilham, nos poemas e imagens de Por contar a possibilidade da incompreensão, isto é, do silêncio, da invisibilidade, do fechamento ao outro, permanece ativa, não bastando apenas olhar os rostos ao redor, mas tentar penetrar o segredo que carregam, o apelo que endereçam a todos e a ninguém – um pouco como queria, quem sabe?, o filósofo franco-lituano Emmanuel Lévinas, para quem a face, os olhos do outro são abertura para a Ética e o afeto, a responsabilidade e o infinito.

tripp
Jan Peter Tripp