TODA A ORFANDADE DO MUNDO

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NAHARIA, Guilherme Gontijo Flores — 17/11/2017

NAHARIA, Guilherme Gontijo Flores

[Primeira parte do texto que escrevi sobre Todos os nomes que talvez tivéssemos, tetralogia do poeta e tradutor Guilherme Gontijo Flores. Naharia (Kotter Editorial)objeto desses primeiros parágrafos, é o último livro da série.]

 

Lâmpada

 

PREFÁCIO

I

[antes que o dia nos sufoque]

 

O poema-livro que aqui está é feito como uma armadilha, uma sutil aporia: em sua tessitura, o texto tenta reter os restos de uma voz que se dispersa, alimentando-se dela e dela se despedindo, de certo modo; mesmo sabendo impossível paralisar o turbilhão do mundo, lança-se à tarefa de suspender o tempo, interpelar o instante e fixar dele (o agora, momento fugidio) um retrato possível, clarão mínimo: lâmpada da memória, naharia, réstia de luz que se projeta sobre o legado de uma vida e o expande, revendo a si, as coisas ao redor, o que existe e o que nunca existiu, com olhos turvos, melancólicos. O passado é denso e a voz que se espalha no texto – costurando o longo poema narrativo que Guilherme Gontijo Flores entrega neste momento aos seus leitores – sabe (sem saber claramente) que à melancolia cabe também força e ânimo, isto é, vigor e alguma alegria. E é por isso que se desprende tanta energia dessas páginas, tanta intensidade das histórias sempre incompletas e interrompidas que a personagem, uma senhora que passeia pelo bairro familiar, entre a casa e o mercado de compras, conta àquele que a acompanha – um ouvinte jovem e atento, alguém que carinhosamente a segue em silêncio (um neto, quem sabe?), acompanhando o continuum das suas palavras.

 

O início do poema é como um destravar da língua, uma máquina que se põe em movimento: surpreendidos em pleno ato, in media res, tudo nasce de um sim. Gesto afirmativo (e por isso mesmo violento, instaurador, aberto e oferecendo-se ao desconhecido), a torrente de imagens se desprende e o discurso surge como fluxo, jorro incontrolável: algo próximo, talvez, ao que se assiste no Poema sujo, de Ferreira Gullar, onde o fio da lembrança é, em princípio, insignificante como uma trilha de formigas que escorre pelo vão do assoalho, mas de repente se abre imenso ao passado, outra vida, à infância, ao corpo, às experiências formativas e às inúteis, ao que a vida tem de essencial e ao que nela é puro gasto, desimportância. Sem a mesma urgência, no entanto, do texto fatalmente político de Gullar, mas de igual modo uma reflexão sobre a finitude e a intensidade, Naharia opera por montagem e sobreposição, articulando as muitas vozes e os múltiplos sentidos que se abrigam na voz da personagem sem os ordenar em excesso, sem os submeter a uma direção unívoca e clara. A sintaxe partida do poema, seus retalhos de textos alheios, os saltos que o atravessam, a modulação de assuntos, linguagens e mesmo formas gráficas (o autor usa muito habilmente o itálico e a CAIXA ALTA para marcar os ritmos e as alternâncias do discurso lírico) preservam em medida justa a dispersão que orienta, incontornavelmente, um mergulho no tempo como o que aqui vai, além de ser também o modo natural de uma conversa qualquer, um encontro desarmado com alguém que se ama. Algo do monólogo final de Molly Bloom, de Ulisses, de James Joyce, ecoa no texto, afinal: não é mais uma Penélope quem desfia os seus desgostos, certamente, mas alguma coisa afirmativa e sensual, intrincada e circular percorre o tecido do poema, sua explosão verbal, dando ao texto um sentido de reinscrição de mitos e narrativas arcaicas. Algo como uma poética da leitura se esboça também aqui, como ocorre no romance de Joyce, na medida em que diversas passagens da Odisseia homérica, do Ulisses e de outros livros e autores (João Guimarães Rosa, T. S. Eliot, Carlos Drummond de Andrade, Dante Alighieri) aparecem em Naharia, misturados, confundidos, traduzidos na linguagem com que se faz o livro, às vezes um amontoado de cacos e ecos e retalhos de outros tempos, outras textualidades.

 

No centro de tudo o que Naharia põe a descoberto, entre as “voltas infindas da fala” parece haver uma casa, presença-ausência fantasmática, verdadeiro símile das estruturas profundas do livro. A casa na qual os personagens transitam no presente do texto recorda uma outra, inapreensível, irrecuperável – “é a casa que fica na memória/onde habitamos mais a cada dia”: é nela que de fato os afetos se concentram; do mesmo modo, a infância, a convivência com os irmãos e filhos, as asperezas do casamento parecem se fazer notar com mais força na sua falta, isto é, não nas marcas que possivelmente deixaram, mas na possibilidade do que podiam ter sido, na hipótese que ainda são, potências de uma vida que, mesmo passada, parece não ter se esgotado ainda: “o pai que nunca houve/ daquele filho que não nasceu”. O caráter espectral do tempo parece vital ao texto, espécie de motor que o movimenta: o passado não cessa de retornar à consciência e ao presente, invadindo a vida, fazendo do discurso-poema, em certo sentido, uma espécie de diálogo com os mortos: a intempestividade que o caracteriza não é a da invocação dos que se foram, num ritual de chamado e controle relativo de sua presença (fugaz) entre nós; ao contrário, eles, os mortos, é que dão as cartas, ocupando o espaço do coração e fazendo-se corpo, lembrança palpável que dá substância à própria ausência, uma vez que a sensação ilusória de sua realidade no mundo dos vivos mais destaca a falta que fazem do que a ameniza ou conjura: “teu silêncio me acompanhava/nos cantos da casa em que não estava”.

 

A velhice, neste livro, é o território da despossessão. Se a fragilidade física e o comedimento normalmente associados à maturidade não parecem ter lugar no poema, uma sensação permanente de exílio se apresenta como traço fundamental, condição incontornável dos que já não vivem num tempo que lhes pertence. A infância, mais que a juventude, é a sua pátria perdida, e tudo o que se experimenta no presente é índice negativo de falta e distância, algo como uma impostura qualquer: o gosto da água, a acidez da laranja não são as mesmas e soam puro artifício diante dos sabores provados; o mesmo ocorre com as paisagens da memória, o mapa mental e afetivo da casa, do seu oco habitável e tão familiar que agora, por mais antiga seja a vivência em seu interior, não se apresenta como as da vida de criança. Não há resignação nem nostalgia paralisante em Naharia, é bom que se diga – e as muitas fotos que atravessam o texto revelam isso, para além de abrirem-se também a inúmeros outros sentidos. Em parte, é possível dizer, elas vão se opor (junto às palavras) à “noite imensa do esquecimento” , treva total, risco de aniquilação do vivido. A meditação sobre o tempo e a velhice que se dá através delas e nos versos do poema-diálogo (do drama-poesia, para lembrar aqui Maria Gabriela Llansol) se aproxima mais, quem sabe?, daquilo que Jean Améry, filósofo e escritor alemão, propôs sobre o tema (em Über das Altern, 1968): o envelhecimento é uma forma de estranhamento de si e desertificação do mundo, um modo violento de aprender a viver morrendo, de viver com a morte dentro de si, deflagrada e próxima.

Antevéspera, noite interior – atravessar uma canção que me atravessa — 27/09/2017

Antevéspera, noite interior – atravessar uma canção que me atravessa

*

Dando continuidade a uma série iniciada ainda no ano passado, ATRAVESSAR UMA CANÇÃO QUE ME ATRAVESSA, deixo a primeira parte (de três) da leitura – bastante pessoal – de um poema de Age de Carvalho. Na mesma série, talvez uma plaquette futura, exercícios afetivos de leitura do Cântico dos cânticos para flauta e violão,  de Oswald de Andrade, e do Ciclo do amante substituível, de Ricardo Domeneck.

*

 

Segues a tua estrela,

embaixo,

além-nuvens, o fulgurante mergulho

no subcéu interior.

 

Teu ovário está lindo,

 

são quatro novos folículos

em posição,

feno e berço da hipótese deposta

à tua porta,

 

bem-vindas

 

as quatro estrelas subterrâneas

abrilhantando a noite possante

de teu ventre

 

em cripta.

*

 

Antevéspera, noite interior

[atravessar uma canção que me atravessa]

 

Age

I

O desejo talvez seja uma língua secreta. Escrito dentro de cada um de nós numa espécie de criptografia particular, de difícil acesso, às vezes quase impenetrável. Nem sempre se sabe o que se deseja, nem mesmo os motivos obscuros que levaram até ali, até ele. A beleza de um rosto, as sutilezas de uma pele delicada ou de um cheiro suave seriam razões suficientes para justificá-lo? Ou o riso fácil, agradável e projetivo, a inteligência, quem sabe?, seria capaz de motivar conversas de dez, doze horas seguidas, em assuntos que se encadeiam uns nos outros infinitamente, leves e como que naturais? Por outro lado: por que alguém desejaria tornar-se professor, esgrimista, arquiteto? É presumível que existam motivações claras, tangíveis, mas que certamente não esclarecem a vontade radical, vontade que se impõe e é paixão. Tantas vezes, é possível dizer, deseja-se, simplesmente. E isso é tudo: sem explicações ou narrativas de origem. E se penso agora em tudo isso, é claro, é porque tenho os olhos e as ideias voltados para outro lugar. Não quero falar abstratamente, nunca quis. Penso naquilo (naquela) que desejo, muita coisa se mistura de repente e não se esclarece. Uma delas: há encantamento em mim pela ideia de um filho, pela paternidade, talvez até pelo mistério da gestação – uma vida que se faz em silêncio, secreta dentro do ventre, a partir das partes de dois corpos que são fundamentalmente estranhos um ao outro. De onde vem, por que em mim persiste? Inútil investigar, pois a sensação geral é maior do que o pensamento. O bem-estar em torno de crianças é perceptível, a mim e aos demais que me cercam. E isso, esse conjunto de experiências e questões possivelmente explica (sem desfazer a trama espessa dos afetos), e de modo parcial, o interesse profundo, a alegria e o fascínio que experimento ao ler o poema de Age de Carvalho (ainda inédito em livro) que se inicia com o verso “Segues a tua estrela”. Nele encontram-se a elegância característica do autor, a precisão vocabular e o refinamento das imagens que marcam a sua poesia; nele estão também colocados, de modo ora bastante cifrado, ora explícito e direto, os motivos da germinação e da fecundidade, temas da sua poesia que é, como se sabe, uma espécie de perscrutação contínua das origens. No poema, como no mito grego (e em tantas outras narrativas cosmogônicas), o céu se relaciona com a origem da vida, numa espécie de reflexão, em escala cósmica, sobre a luta dos contrários (a guerra, a cópula, o mesmo amor) que está na base do surgimento de tudo o que há: terra, águas, corpos, estrelas. No texto de Age, o céu se diz no feminino (apesar da marcação linguística de gênero, que permanece a mesma). E ele existe em toda parte: cobrindo a todos, suspenso no ar – leve como luz-balão – e habitando o interior noturno de uma mulher, espírito e carne. No poema, o corpo feminino é apresentado desde dentro, em focalização íntima: “teu ovário está lindo”. A partir dele, desse órgão (que ocupa uma espécie de centro simbólico do poema) vão se desdobrar e expandir motivos associados à criação e ao nascimento: o corpo da mulher será, ao mesmo tempo, um todo estrelado, poço subterrâneo – pleno de líquido vital –, caverna obscura (cripta), segredo e promessa, manjedoura tranquila e novelo que não termina de se desfiar, de abrir as suas possibilidades de crescimento e transformação. Seus interstícios naturais (do corpo de uma mulher) são pequenas fendas que permitem vislumbrar o mistério, que aqui não convida à decifração ou ao entendimento, mas antes à entrega, ao mergulho sem anteparos na escuridão e no que não se conhece – ainda que seja possível intuir: como que contrariando o verso (tão conhecido, tão bonito, mas cujo sentido aponta para a morte) de Dylan Thomas “Do not go gentle into that good night”, Dylan Thomas.jpg

o poema de Age de Carvalho apresenta a noite como palco privilegiado da criação, da maternidade e da escrita. Recusa-la é refutar a vida e o novo: daí o elogio (indireto) ao olhar ultrassonográfico, à máquina que permite ver – e dizer – a beleza dos ovários e dos folículos, “hipótese deposta” à porta do corpo; daí o chamado à contemplação quase religiosa desses mesmos folículos, receptáculos do mundo, “estrelas subterrâneas”, isto é, imagens espelhada do infinito, espécie de zonas indeterminadas na qual tudo o que já existiu e tudo o que ainda pode vir a ser se mistura, em amálgama, como potência que aponta, ao mesmo tempo, para o passado imemorial e para o futuro. Não será gratuitamente, portanto, que no repertório de imagens do poeta estejam mesclados o aparelho médico, índice do mundo tecnológico moderno, e a narrativa arcaica que circula em torno do céu e do feno, signos que remetem ao sagrado e ao próprio Cristo em sua cama improvisada de infante miserável.

Age II

SOBRE O CÉU COMO ABISMO — 05/09/2017

SOBRE O CÉU COMO ABISMO

[Prefácio do livro Deserto azul, primeira coletânea de poemas de Eduardo Veras]

 

*

 

Sobre o céu como abismo

(A partir de Deserto azul)

 

 

E o mesmo céu

é um deserto

Eduardo Sterzi, Aleijão

Maulpoix

  1. Suspenso entre o céu e o mar, flutuando no interior cilíndrico de um avião entre duas imensidões vazias (e azuis), o poeta pensa e recua, preferindo, ante a possibilidade de entregar-se ao fluxo incontrolável dos acontecimentos (e também da linguagem), dar um passo atrás: “respiro fundo antes da palavra”. Escolhe a distância relativa, afirma uma “travessia diurna” (VERAS, 2017) que se faz de olhos abertos, apto a perceber o novo, o ainda não-visto, mas em resistência à luz feérica do mundo, seu brilho de pedra falsa. A recusa não é aqui isolamento ou proteção excessiva, higienismo: é crise, seleção, modo de afirmar, quem sabe?, uma ética rigorosa, que se transforma e expressa também numa estética precisa: lirismo crítico (a partir e em expansão de Jean-Michel Maulpoix). Observar e intervir (nas tramas da língua, na teia espessa dos afetos, naquilo que a cultura literária coloca em circulação), sem se deixar capturar, preservando um espaço interior, criando intervalos entre as energias constritoras do presente, pequenas zonas de vazio necessário. Representar e refletir liricamente sobre a evidência insuportável do Real: construir máquinas formais, procedimentos, apostar em engrenagens e processos que possam manter o olhar alto e a atenção expectante, os sentidos em alerta e o coração disparado, sem no entanto sucumbir à destruição da queda, ao chamado do chão, ao esmagamento da vontade e da potência. Persistindo na relação (ao mesmo tempo muito antiga, de ressonâncias míticas, mas também eminentemente moderna, posto que técnica) entre poesia e voo: manter-se em suspensão, habitar a turbulência, existir “à flor da fuselagem”, isto é, no limiar entre o dentro e o fora, entre o anteparo e o choque – eis o que parece desejar o poeta, aquilo que se pode perceber, que se deixa ouvir através das nuances da música difícil que produz.

 

*

 

– a Via-Láctea

a trilha ao sem fim

de mim

Age de Carvalho, Ainda: em viagem

 

2.  O poema como mergulho minucioso, inspeção do céu interior que há sempre em cavernas, corpos, oceanos. O poema como elogio do escafandro: descida cuidada que se faz com atenção amorosa e que não exclui, antes convoca e destaca, a mediação de procedimentos, técnicas, telas de vidro e aço, arranjos formais: todos, cada um à sua maneira, são modos de acesso possível à matéria movente do mundo, ao “espaço noturno [que] é vasto como alvéolos pulmonares” (VERAS, 2017). O poeta parece afirmar que, sem a terceira ponta de um mecanismo, sem o vértice de uma mediação qualquer, não há relação efetiva com o outro (as muitas faces do real, o dado exterior, a diferença irredutível que nos cerca): só se pode vê-las, compreendê-las (propor o seu sentido, absorvê-las) de fato indiretamente – estímulos sensíveis e afetos atravessados pela razão. “Telescópios (…) satélites, observatórios”, instrumentos de observação e conhecimento, fazem às vezes, no tecido dos poemas, do ritmo expansivo e respirável da prosa, da insistência das repetições, da sobriedade de frases e versos substantivos, da lição de coisas que neles vão. E são, assim como sismógrafos, bússolas e pás, objetos de busca e exploração que permitem remexer também em si, não apenas a terra ao redor. O aspecto reflexivo dos textos, a força que neles trabalha por reter e desvelar é ambígua e multidirecional: quer espraiar-se, avançar sobre o espaço e percorre-lo, apropriando-se dos seus detalhes, desdobrando-os em nomes e sensações, ao mesmo tempo em que se volta antes sobre si, reconhecendo que o desconhecido e o inumerável igualmente ali existem. É o paradoxo que estrutura as imagens: “olhar para dentro tão fundo”, ou ainda a “Via-Láctea no fundo dos olhos”, um modo para sempre indeterminado de percepção: é saber-se a si receptáculo do cosmos e notar, no universo mesmo, as partes ínfimas, insignificantes que o compõe.

 

*

 

a palavra volátil

que dê perspectiva ao vazio onde ainda

caberia um mundo

Marcos Siscar, Manual de flutuação para amadores

 

3.   Arquitetura delicada, o poema, aqui, quer ter a solidez da argila. Nem a dureza impenetrável do mármore, nem a porosidade da madeira: a consistência simples do barro, “língua de barro”, terra úmida, algo entre a opacidade absoluta e a fragilidade total. O ato da escrita como um “esporte sem regras”, isto é, uma atividade ordenada, regular, mas que preserva uma nota qualquer de liberdade, do elemento instável que existe entre o que é sólido, fechado em si, e o que é líquido, pura passagem. A palavra poética, portanto, como matéria vertente, metal dúctil que se desdobra e organiza de diferentes maneiras, sempre pronto a assumir uma forma provisória, volátil. A aparente organização plena do livro sugere domínio, força que pacifica as formas em ebulição e as faz dizer aquilo que o poeta deseja. Nada mais inexato. A afirmação da criticidade e a exposição das linhas gerais do projeto, assinaladas em autorrelevo, evidentes e apontando para a consciência que quer dirigir o impulso criativo, podem indicar um arredondamento da forma, uma certeza de objetivos que os poemas, lidos um a um, não têm. Muitos confessam os seus limites, revelam a maquinaria imperfeita que os coloca em movimento. O barro é o seu horizonte e símile mais preciso, posto que querem durar, erigir-se num molde claro, ainda que saibam sua condição terrosa. Despojada e melancólica, como tudo o que vem da terra e a ela sabe pertencer. Se há um desejo demiúrgico aqui, a criação afirmativa de um universo de artifícios no qual a vida dos poemas se sustenta; se há a proposição de uma ética da representação que submete, ou procura submeter, o pensamento e a linguagem, isso no entanto não deve obscurecer o dado precário, o plano de voo baixo, a condição “insustentavelmente leve” desses textos, cujo peso racional e estudado, cuja couraça protetora não isola o sujeito da escrita nem mesmo transforma alquimicamente o mundo, mascarando assim a sua condição inicial, fenomenológica. O que vão aqui, neste livro, são “palavras contra a evidência do céu” – deserto azul – tentativas de atribuir significado àquilo que, pura presença, resiste como monolito à vontade de sentido, ao impulso de captura e compreensão. O tema insistente da queda, que tanto parece fascinar o poeta e inegavelmente mobiliza a sua atenção, atuando como uma espécie de contraparte lógica ao voo, à nostalgia da altura que por certo atravessa os poemas (mesmo que se trate de voo raso, ainda assim é um corpo que se sustenta no ar, milagre do Espírito e “questão de aerodinâmica”), é assimilado, talvez, naquilo que tem de terreno, mundano, pedestre. Os ecos místicos, é certo, apontam para outro lugar: para a morte, o silêncio, o castigo. Resultado do excesso, consequência terrível. É possível, contudo, que a referência à Queda seja ainda uma última forma de apego e defesa do que é rasteiro: além de advertência, soe como reconhecimento de que tudo é queda, tudo – e todos – erguem-se acima do chão para em algum momento voltar ao solo, ao acolhimento da terra e aos mistérios que, mais que o céu, ela guarda e promete.

Du

POESIA PRESENTE: problemas e perspectivas (da forma) — 05/07/2017

POESIA PRESENTE: problemas e perspectivas (da forma)

Estudos Temáticos: Literatura Brasileira Contemporânea

POESIA PRESENTE: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS (DA FORMA)

(Hilda Hilst, Orides Fontela, Age de Carvalho, Carlito Azevedo, Ricardo Domeneck)

[Ter./Qui. 07:30 – 09:10] – FaLe/UFMG

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EMENTA 

A partir do estudo sistemático da obra de cinco autores, o curso pretende mapear e discutir os problemas e perspectivas da forma na poesia produzida no Brasil nas últimas décadas. As soluções e impasses propostos pelos autores – a saber, Hilda Hilst, Orides Fontela, Age de Carvalho, Carlito Azevedo e Ricardo Domeneck – serão tomados como percursos exemplares, a partir dos quais a tradição (brasileira e internacional) é repensada e reproposta, bem como os caminhos da produção poética presente foram se delineando. Entre outros, o curso pretende observar e debater a) o lugar da forma fixa, sua sobrevivência e transformação; b) as possibilidades de uma poesia impessoal e concisa, desligada das tradições retóricas muito comuns no país; c) a visualidade e os diálogos com as artes plásticas; d) a passagem para a prosa e a questão da antipoesia; e) as metamorfoses do lirismo.

 

PROGRAMA 

  1. A responsabilidade da forma – Impasses e soluções: caminhos da poesia no Brasil. O verso. Ritmo e visualidade. A língua se expande. Poesia e pensamento.
  2. O arcaico e o contemporâneo: Hilda Hilst, Ricardo Domeneck.
  3. A língua menos: Orides Fontela, Age de Carvalho.
  4. Passo de prosa, modos de decomposição: Carlito Azevedo.
  5. A questão da subjetividade: em direção ao outro – Hilda Hilst, Age de Carvalho, Ricardo Domeneck.

Orides

CRONOGRAMA

I – Apresentação do professor e do curso. Apresentação breve dos poetas estudados. Meios e métodos de avaliação.

IIPoesia presente: impasses e questões. Leitura de “Poesia e Modernidade: da morte da arte à constelação: o poema pós-utópico”, Haroldo de Campos. Leitura de poemas.

IIIPoesia presente: impasses e questões. Leitura de “Papeis colados”, Flora Sussekind. Leitura de poemas.

IVPoesia presente: impasses e questões. Leitura de “Considerações sobre a poesia brasileira em fim de século”, Iumna Maria Simon. Leitura de poemas.

VPoesia presente: impasses e questões. Leitura de “A cisma da poesia brasileira”, Marcos Siscar. Leitura de poemas.

VIPoesia presente: impasses e questões. Leitura de “Ideologia da percepção”, Ricardo Domeneck. Leitura de poemas.

VIIA responsabilidade da forma. Verso, ritmo, visualidade, performance. Leitura de O arco e a lira, Octavio Paz.

VIIIA responsabilidade da forma. Verso, ritmo, visualidade, performance. Leitura de Introdução à poesia oral, Paul Zunthor.

IXA responsabilidade da forma. Verso, ritmo, visualidade, performance. Leitura de Poesia concreta brasileira, Gonzalo Aguilar.

XO arcaico e o contemporâneo. O lugar da tradição em Hilda Hilst e Ricardo Domeneck. Leitura de Da poesia (seleção de poemas de Ode fragmentária; Júbilo, memória, noviciado da paixão; Amavisse & Cantares).

Age de Carvalho.jpg

XIO arcaico e o contemporâneo. O lugar da tradição em Hilda Hilst e Ricardo Domeneck. Leitura de Ciclo do amante substituível. Avaliação I (resenha)

XIIO arcaico e o contemporâneo. O lugar da tradição em Hilda Hilst e Ricardo Domeneck. Leitura de Da poesia (seleção de poemas de Ode fragmentária; Júbilo, memória, noviciado da paixão; Amavisse & Cantares).

XIIIO arcaico e o contemporâneo. O lugar da tradição em Hilda Hilst e Ricardo Domeneck. Leitura de Medir com as próprias mãos a febre.

XIVA língua menos. Economia e densidade em Orides Fontela. O signo e o ser. Leitura de Poesia completa (seleção de poemas de Transposição, Alba & Teia)

XVA língua menos. A perscrutação das origens em Age de Carvalho (linguagem, letra, corpo). Poemas selecionados de Caveira 41, Trans & Ainda: em viagem.

XVIA língua menos. Economia e densidade em Orides Fontela. O signo e o ser. Leitura de Poesia completa (seleção de poemas de Transposição, Alba & Teia)

XVIIA língua menos. A perscrutação das origens em Age de Carvalho (linguagem, letra, corpo). Poemas selecionados de Caveira 41, Trans & Ainda: em viagem.

XVIIIPasso de prosa, modos de decomposição. Carlito Azevedo e a antipoesia. Leitura de Monodrama & O livro das postagens.

XIXPasso de prosa, modos de decomposição. Carlito Azevedo e a antipoesia. Leitura de Monodrama & O livro das postagens.

Ricardo-Domeneck

XXPasso de prosa, modos de decomposição. Carlito Azevedo e a antipoesia. Leitura de Monodrama & O livro das postagens. Avaliação II (prova)

XXIA questão da subjetividade: em direção ao outro. Hilda Hilst e o território do sagrado: saídas de si. Leitura de Do desejo & Da noite.

XXIIA questão da subjetividade: em direção ao outro. Hilda Hilst e o território do sagrado: saídas de si. Leitura de Do desejo & Da noite.

XXIIIA questão da subjetividade: em direção ao outro. Age de Carvalho: poesia e endereçamento: diálogo e dedicação. Poemas de Caveira 41, Trans & Ainda: em viagem.

XXIVA questão da subjetividade: em direção ao outro. Age de Carvalho: poesia e endereçamento: diálogo e dedicação. Poemas de Caveira 41, Trans & Ainda: em viagem.

XXVA questão da subjetividade: em direção ao outro. Ricardo Domeneck: lirismo e expansão do eu. Desejo e desdobramento do sujeito. Leitura de Ciclo do amante substituível & Medir com as próprias mãos a febre.

XXVIA questão da subjetividade: em direção ao outro. Ricardo Domeneck: lirismo e expansão do eu. Desejo e desdobramento do sujeito. Leitura de Ciclo do amante substituível & Medir com as próprias mãos a febre.

XXVII – Orientação para desenvolvimento dos trabalhos finais.

XXVIII – Orientação para desenvolvimento dos trabalhos finais.

XXIX – Considerações finais. Caminhos da poesia brasileira contemporânea.

XXX – Considerações finais. Caminhos da poesia brasileira contemporânea. Entrega dos trabalhos finais.

Mnodrama cotovia

BIBLIOGRAFIA

AZEVEDO, Carlito. Monodrama. (7Letras, 2009)

AZEVEDO, Carlito. Livro das postagens (7Letras, 2016)

AZEVEDO, Carlito. Sublunar (7Letras, 2001)

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I (Brasiliense, 2004)

BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. (Assírio & Alvim, 2009)

CALIXTO, Fabiano. Nominata Morfina (Corsário-Satã, 2014)

CALIXTO, Fabiano & TOSTES, Pedro (org.) Vinagre: uma antologia de poetas neobarracos

CAMPOS, Haroldo. O arco-íris branco (Imago, 1997)

CÁMARA, Mario. Corpos pagãos: usos e figurações na cultura brasileira (Ed. UFMG, 2014)

CARVALHO, Age. Ainda: em viagem (UFPA, 2015)

CARVALHO, Age. Caveira 41 (CosacNaify, 2003)

CARVALHO, Age. Trans (CosacNaify, 2007)

CICERO, Antonio (org.) Forma e sentido contemporâneo: poesia (EdUERJ, 2012)

COELHO, Frederico (org.) Poesia Marginal (IMS, 2015)

DANZIGER, Leila. Três ensaios de fala (7Letras, 2012)

DOMENECK, Ricardo. Ciclo do amante substituível (7Letras, 2012)

DOMENECK, Ricardo. Medir com as próprias mãos a febre (7Letras, 2015)

FONTELA, Orides. Poesia reunida (CosacNaify, 2006)

FREITAS, Angélica. Um útero é do tamanho de um punho (CosacNaify, 2012)

GARCIA, Marília. 20 poemas para o seu walkman (Cosac Naify, 2007)

GARRAMUNO, Florencia. Frutos estranhos (Rocco, 2014)

HILST, Hilda. Da Poesia (Companhia das Letras, 2017)

HOLLANDA, Heloísa Buarque. 26 poetas hoje. (Aeroplano, 2007)

HOLLANDA, Heloísa Buarque. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde (Aeroplano, 2006.

MELO, Tarso. Planos de fuga e outros poemas (Cosac Naify, 2005)

NANCY, Jean-Luc. Resistência da poesia (Vendaval, 2002)

PEDROSA, Celia (org.) Subjetividades em devir (7Letras, 2008)

PUCHEU, Alberto. Apoesia contemporânea (Azougue, 2014)

REDONDO, Tercio. Caminhos da lírica brasileira contemporânea (Nankin, 2014)

RIBEIRO, G. S. A experiência da destruição na poesia de Carlito Azevedo (Aletria, 2014)

RIBEIRO, G. S. Expressão lírica de um mundo em colapso: Carlos Drummond de Andrade e Carlito Azevedo (Ipotesi, 2016)

SISCAR, Marcos. A soberba da poesia (Lumme, 2013)

SISCAR, Marcos. De volta ao fim: o fim das vanguardas como questão da poesia contemporânea (7Letras, 2016)

SISCAR, Marcos. O livro das postagens: resenha (O Globo, 2017)

SISCAR, Marcos. Poesia e crise (Ed. UNICAMP, 2010)

STERZI, Eduardo. Cadáveres, vaga-lumes, fogos-fátuos (Celeuma, 2013)

SUSSEKIND, Flora. A voz e a série (Ed. UFMG/Sette Letras, 1998)

SUSSEKIND, Flora. Papéis colados (Ed. UFRJ, 2002)

WEINTRAUB, Fábio. O tiro, o freio, o mendigo e o outdoor: representações do espaço urbano na poesia brasileira pós-1990 (USP, 2013)

Variações sobre o ENSAIO — 19/05/2017

Variações sobre o ENSAIO

 

Universidade Federal de Minas Gerais

Faculdade de Letras

Prof. Dr. Gustavo Silveira Ribeiro

2017.2

Título

Estudos Temáticos de Literatura Brasileira:

O ENSAIO NO BRASIL: TEORIA E PRÁTICA

Machado

Ementa

O curso propõe investigar algumas das tendências fundamentais do ensaio, gênero muito praticado no país mas, curiosamente, poucas vezes pensado de modo sistemático entre nós. A partir da leitura de textos teóricos fundamentais sobre o gênero, além de um conjunto significativo de ensaios produzidos no Brasil e no exterior, o curso espera refletir mais detidamente sobre questões de método e forma do ensaio, estimulando o aluno também a pensar sobre a sua própria prática de escrita, suas leituras e possibilidades de criação.

Programa

Políticas da escrita – O ensaio: tentativas de definição. Narração, autobiografia, crítica. Impasses e possibilidades.

A forma informe (I): leituras, análises: Walter Benjamin, Roland Barthes, Pier Paolo Pasolini, Susan Sontag, Peter Stallybrass, Georges Didi-Huberman, Graciela Speranza.

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A forma informe (II): leituras, análises: Antonio Candido, Silviano Santiago, João Adolfo Hansen, Roberto Schwarz, Flora Sussekind, Eneida Maria de Souza, Nuno Ramos, João Camillo Penna, Marcos Natali.

 Modos de composição: processos: Tema, pesquisa, voz, montagem. Exercícios de escrita.

 

Cronograma

I – Apresentação do professor e do curso. A proposta de uma Oficina Intermitente. Meios e métodos de avaliação.

II – O ensaio: tentativas de definição. Discussão : Theodor W. Adorno: “O ensaio como forma”.

III – O ensaio: tentativas de definição. Discussão: Theodor W. Adorno: “O ensaio como forma”.

IV – O ensaio: tentativas de definição. Discussão: João Barrento: “Geografias do acaso: ensaio geral do ensaio”.

V – O ensaio: tentativas de definição. Discussão: João Barrento: “Geografias do acaso: ensaio geral do ensaio”.

VI – O ensaio: tentativas de definição. Discussão: “Escrever a leitura”/”Da leitura”, Roland Barthes.

VII – A forma informe: leituras e análises. A escrita e o fragmento: “Paris, capital do século XIX”, Walter Benjamin.

VIII – A forma informe: leituras e análises. Notas de leitura: “Flaubert e a frase”, Roland Barthes.

IX – A forma informe: leituras e análises. Diário e narração: “Viagem a Hanói”, Susan Sontag.

X – A forma informe: leituras e análises. Escrever contra: o exercício da polêmica. “Cadáveres, vagalumes, fogos-fátuos”, Eduardo Sterzi (lendo Pasolini).

XI – A forma informe: leituras e análises. Memória e teoria social: “O casaco de Marx”, Peter Stallybrass.

XII – A forma informe: leituras e análises. Arqueologia do horror – a escrita como escavação do passado traumático: “Cascas”, Georges Didi-Huberman.

XIII – A forma informe: leituras e análises. A cultura pop e as voltas da dialética: “Verdade tropical: um percurso de nosso tempo”, Roberto Schwarz.

XIV – A forma informe: leituras e análises. Literatura e as margens do tecido social: “O espelho da dependência”, João Camillo Penna.

XV – A forma informe: leituras e análises. O desafio do contemporâneo: “Tudo fala – comentário sobre o trabalho de Nuno Ramos”, Flora Sussekind.

XVI – A forma informe: leituras e análises. As fronteiras do humano: “Poéticas da animalidade”, Maria Esther Maciel.

XVII – A forma informe: leituras e análises. A crítica e a dobra formal: “Esquema para Vieira”, João Adolfo Hansen.

XVIII – A forma informe: leituras e análises. Tentativas de teoria (I): “O direito à literatura”, Antonio Candido.

XIX – A forma informe: leituras e análises. Tentativas de teoria (II): “O entrelugar do discurso latinoamericano”, Silviano Santiago.

XX – A forma informe: leituras e análises. Escrever a vida: biografia, autobiografia: “A morte na Glória”, Eneida Maria de Souza.

XXI – Modos de composição: processos. O tema em questão: Oficina Intermitente.

XXII – Modos de composição: processos. Métodos e modos da pesquisa: Oficina Intermitente.

XXIII – Modos de composição: processos. Inventar para si uma voz: Oficina Intermitente.

XXIV – Modos de composição: processos. Inventar para si uma voz: Oficina Intermitente.

XXV – Modos de composição: processos. O texto como colagem e experimentação: Oficina Intermitente.

XXVI – Modos de composição: processos. O texto como colagem e experimentação: Oficina Intermitente.

XXVII – Exercícios de escrita. Orientação para desenvolvimento dos trabalhos finais.

XXVIII – Exercícios de escrita. Orientação para desenvolvimento dos trabalhos finais.

XXIX – Exercícios de escrita. Orientação para desenvolvimento dos trabalhos finais.

XXX – Entrega dos textos. Avaliação final.

 

Bibliografia

ADORNO, Theodor W. Ensaio como forma. In: Notas sobre literatura I (34, 2003)

BAPTISTA, Abel Barros. De espécie complicada (Angelus Novus, 2010)

BARRENTO, João. O gênero informe (Assírio & Alvim, 2010)

BARTHES, Roland. O grau zero da escrita (Martins Fontes, 2005)

BARTHES, Roland. O rumor da língua (Martins Fontes, 2006)

BENJAMIN, Walter. Passagens (Imprensa Oficial/UFMG, 2006)

CANDIDO, Antonio. Vários escritos (Ouro sobre Azul, 2006)

COELHO, Teixeira. História natural da ditadura (Iluminuras, 2006)

DERRIDA, Jacques. Essa estranha instituição chamada literatura (Ed. UFMG, 2014)

DERRIDA, Jacques. La loi du genre. In: Parages (Galilée, 1986)

DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas (Serrote, 2015)

DIDI-HUBERMANN, Georges. A sobrevivência dos vaga-lumes (Ed. UFMG, 2010)

GIORDANO, Alberto. Modos del ensayo (Beatriz Viterbo, 2014)

HANSEN, João Adolfo. Esquema para Vieira (In: Nenhum Brasil existe, 2001)

LIMA, Luiz Costa. Frestas. A teorização em um país periférico (Contraponto, 2013)

MACIEL, Maria Esther. Pensar/escrever: o animal – ensaios de zoopoética e biopolítica (Ed. UFSC, 2011)

MIRANDA, Wander Melo. Corpos escritos (Edusp/UFMG, 1992)

NATALI, Marcos. Além da literatura (Literatura e Sociedade, 2006)

PENNA, João Camillo. Comunidades sem fim (Circuito, 2015)

PENNA, João Camillo. Escritos da sobrevivência (7Letras, 2013)

PIGLIA, Ricardo. Respiração artificial (Iluminuras, 1998)

ROCHA, João Cezar Castro (org.) Nenhum Brasil existe (UniverCidade, 2000)

SANTIAGO, Silviano. Em liberdade. (Paz e Terra, 1981)

SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos (Rocco, 2000)

SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra (Rocco, 2002)

SANTIAGO, Silviano. Ora direis, puxar conversa! (Ed. UFMG, 2005)

SEBALD, W. G. O caminhante solitário (Almedina, 2009)

SEBALD, W. G. Os anéis de Saturno (Companhia das Letras, 2009)

SCHWARZ, Roberto. Martinha versus Lucrécia (Companhia das Letras, 2012)

SONTAG, Susan. A vontade radical (Companhia das Letras, 2016)

SONTAG, Susan. Sobre fotografia (Companhia das Letras, 2010)

SOUZA, Eneida Maria. Janelas indiscretas (Ed. UFMG, 2011)

SOUZA, Eneida Maria. Pedro Nava, o risco da memória (Funalfa, 2004)

STALLYBRASS, Peter. O casaco de Marx: roupa, memória, dor (Autêntica, 2012)

STERZI, Eduardo. Cadáveres, vaga-lumes, fogos-fátuos (In: Eutomia, 2012)

SUSSEKIND, Flora. Tudo fala. In: (Possibilidades da nova escrita literária no Brasil, 2015)

  

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Rádio UFMG — 29/03/2017
:fechar um livro, abrir outro: — 18/03/2017

:fechar um livro, abrir outro:

Amanhã cedo, daqui apenas algumas horas, lanço em Belo Horizonte, sempre a primeira cidade a ver os meus escritos insignificantes, O drama ético na obra de Graciliano Ramos: leituras a partir de Jacques Derrida (Ed. UFMG, 2016, 252 p.). Não sei mais o que penso do livro, não sei o que pensava exatamente quando o escrevi, anos atrás.

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A única resposta hoje à sensação ambígua de publicar um livro tão antigo e distante de mim é lançar-me à escrita de outro, enfrentar o desconhecido de um novo projeto que nasce e se consolida. O próximo trabalho já se anuncia, vai ao meio, neste ano ainda, quem sabe, ganha o papel: é algo experimental, num certo sentido, e bem mais próximo do que eu faço hoje e gostaria de continuar a fazer indefinidamente: escrever sobre poesia recente, ter de lidar com textos sem qualquer apoio ou memória crítica. Simplesmente ler, pensar com, propor sentidos que o livro em questão (muitas vezes apenas projeto em curso) possa suportar com dignidade, e que eu mesmo possa imprimir com dignidade.

Voz que vem do futuro, poesia por vir reúne um conjunto de leituras que venho fazendo de livros de poesia que, bem ou mal, não existem – ou não existiam na época em que os meus textos foram escritos. É algo entre o exercício livre da imaginação e o esforço crítico e interpretativo, uma vez que me debruço sobre objetos moventes, textos que os autores ainda estão elaborando e a que tenho acesso, via PDF, em versões virtuosamente precárias. Há um traço qualquer de ficção implicado aqui: não só porque toda crítica é ficcional, como é fácil reconhecer, mas também por conta do perfil pessoal que acompanha os pequenos ensaios. Não visitei cada um dos autores, alguns mesmo nunca vi, ou vi apenas de passagem. Outros são amigos, pelo menos um bastante íntimo; poucos, de fato, partilharam qualquer traço da sua intimidade comigo. Mas procuro inventar, perfazer textualmente como que uma leitura demorada da mesa de trabalho dos poetas – ao modo de certos críticos de arte do passado, que podiam frequentar o espaço de criação dos artistas (pintores, escultores, gravuristas) sobre os quais desejavam escrever.

O resultado, salvo melhor juízo, é o que segue: em itálico o nome do ensaio: logo abaixo, o título (provisório em alguns casos) do livro.

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VOZ QUE VEM DO FUTURO, POESIA POR VIR

Visita ao ateliê

[Work in progress

A mesa

Rastro, traço, presença]

  1. A carne e o cosmos: Rodrigo Lobo & Camila Hion

[Tatuagens complicadas do meu peito – 2015]

  1. No centro de mundos em extinção: Leila Danziger

[Ano novo – 2016]

  1. Sobre o céu como abismo: Eduardo Veras

[Deserto Azul – 2016]

  1. Destruir, ela disse: Mônica de Aquino

[Fundo falso – 2015]

  1. Diário e sobrevida: vertigens: Alberto Pucheu

[Para que poetas em tempos de terrorismo? – 2016]

  1. Registro, desgaste: tempo dentro do tempo: Guilherme Gontijo Flores

[Naharia – 2016]

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  1. Do outro lado da noite: Laura Erber

[Mesa de Inspecção do Açúcar e Tabaco – 2016]

  1. Violácea, vermelho-sangue: Adelaide Ivánova

[O Martelo – 2015]

  1. Um rosto nasce em torno da voz: Casé Lontra Marques

[O que se cala não nos cura – 2015]

  1. Mácula, opróbrio, vendeta: Diego Vinhas

[Corvos contra a noite – 2017]

  1. O coração obscuro das coisas: Liv Lagerblad

[Nove poemas perdidos – 2017]

  1. A memória do som: Makely Ka

[Poemas – 2017]

Escritório

Poesia contra polícia — 05/03/2017

Poesia contra polícia

SprayABRALIC, Rio, 2017

Simpósio 54

Prof. Dr. Gustavo Silveira Ribeiro (UFMG)

Prof. Dr. Tiago Guilherme Pinheiro (UNICAMP)

 

Título

Poesia contra polícia: cenas e formas de combate na produção poética contemporânea

 

Palavras-chave

Poesia contemporânea; Polícia; Violência; Combate

 

Resumo

Novas situações sociais, novos arranjos de poder trazem à tona o espectro de antigos problemas: num cenário amplo em que um conjunto de políticas globais e nacionais prepara o terreno para um novo estágio da violência estrutural e de incremento das formas de exploração do trabalho e da degradação da vida comum cabe recolocar, uma vez mais aos pesquisadores do campo das Letras, a velha pergunta sobre como a Poesia e a Polícia se encontram e se confrontam nas diferentes cenas que compõe esse tempo heterogêneo que chamamos de “contemporâneo”. Pensar esse encontro é, desde sempre, pensar o embate entre a potência e o controle, o desregramento e a norma cega, a inquietação da dúvida permanente e a certeza total, sem fissuras ou contraditos. Nesse sentido, são mais do que duas instituições ou práticas sociais que aqui se enfrentam, mas dois modos de conhecer o mundo, duas maneiras de se relacionar com o corpo, o pensamento e as práticas sociais.

Entre todas as diferenças que as separam, há no conflito histórico e constante entre poesia e polícia uma zona simbólica comum, constituída pelos modos como ambas buscam fazer um uso particular de linguagem, levando ao limite sua força simbólica. Se a primeira busca fazer da tensão entre som e sentido, texto e gesto, seu modo de constituir mundos, a outra busca instituir o ato performativo total, no qual palavra e ordem, voz e violência, história e natureza, coincidiriam totalmente, sem arestas ou ambiguidades de qualquer forma: a tentativa de conciliar esses duas visões produziu, no século XX, os piores tipos de pesadelo, como nunca é possível esquecer.

Vinagre - capa

É notório que com o aumento das intensidades em torno de questões como a migração e a xenofobia, a concentração cada vez mais acelerada de riqueza, o desmantelamento geral de instituições públicas, a precarização e instrumentalização do ensino, o abandono de políticas para refrear a destruição ecológica, a evidenciação cada vez mais cínica do perpétuo estado de exceção em que vivem as sociedades como a brasileira – tudo isso faz com que o aparato policial se difunda cada vez mais, estendendo para todos os lados os seus tentáculos, ascendendo quase inconteste como principal agente do estado, verdadeira materialização do seu poder. Polícia aqui não se entende apenas como sua manifestação mais patente como aparelho repressor do estado, que tem como objetivo garantir a Lei, agindo ao mesmo tempo como sua encarnação e excesso. Trata-se de um congelamento na própria trama do sensível, na contagem e manutenção dos lugares próprios a cada componente em uma sociedade, consistindo no próprio avesso da política, tal como a descreve Jacques Rancière. A recente situação brasileira, inclusive, oferece exemplos mais que suficientes para que se possa observar também não só a natureza de classe do aparato policial, sua brutalidade excludente e ação continuamente discricionária para com os setores mais frágeis da sociedade, como permite também pensar a transformação dessa instituição violenta e autoritária em verdadeiro paradigma, uma vez que as formas de vigilância e cerceamento da liberdade, bem como de apoio completo ao poder central, vêm se tornando cada dia mais amplas, espalhando-se no corpo da sociedade para além da atuação imediata do aparato policial-militar. É como se se entranhasse na sociedade, de modo acelerado, o estigma do terror e do controle que governam as instituições voltadas para a repressão e o enquadramento coletivo.

Se a denúncia e a luta direta contra esse estado de coisas não pode ser considerada uma tarefa específica (ou mesmo primordial) da poesia – sem que se lhe inflija uma ordem de restrição qualquer, uma normatização de fundo também autoritária, uma limitação, enfim, a sua própria potência de desestabilização – é necessário reconhecer que a sua vocação sempre foi combativa. E que, particularmente no período moderno, os enfrentamentos com o poder (seja ele estatal ou econômico, cultural ou ideológico) marcaram de maneira decisiva a história da poesia, aguçando suas armas ou revelando, em certos casos, os seus limites letais: a trajetória de Lorca e Brodsky e Pasolini, entre tantos exemplos possíveis, se afirmam aqui. Convém lembrar também que a literatura é um esporte de combate, é pugilista, agonística, para recordar o mote de um curso oferecido por Antoine Compagnon e que faz ecoar uma série de autores, de Homero a Cortázar, de Dante a Carlito Azevedo, e tantos outros no caminho. Diante desse conjunto amplo e heterogêneo de coisas, o presente Simpósio gostaria de acolher trabalhos que se proponham a pensar as múltiplas formas e direções do embate entre poesia e polícia hoje na cultura contemporânea (não só do Brasil), de modo a fazer notar o crescente destino político da poesia produzida no presente entre nós, seu caráter contestatório e anti-establishment. Comunicações dedicadas a observar as representações da violência e do terror são bem-vindas, assim como aquelas que querem investigar como, no plano da linguagem e das formas específicas da lírica, a linguagem policial pôde ser aproveitada, bem como as maneiras com que a poesia vem elaborando os contra-discursos com que esmiuçar e combater a fala sem sombras do poder.

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Brodsky
o desejo é um lago azul: José Leonilson — 02/03/2017

o desejo é um lago azul: José Leonilson

  1. Desvio, fuga, expansão

Jean-Luc Nancy, num texto justamente célebre, Resistance de la Poésie, afirmou que a poesia carrega em si, constitutivamente, um paradoxo, uma torção de origem que a desloca sempre, que a torna problemática (em muitos sentidos), seja em relação em relação às leis de ferro do Mercado, seja em relação às normatizações comuns à linguagem e ao pensamento. Segundo ele, “a poesia não coincide consigo mesma: talvez seja essa não-coincidência, essa impropriedade substancial, aquilo que faz propriamente a poesia” (NANCY, 2005, p. 11). Curiosa afirmação: dela, um termo se destaca, quase vertiginoso: a impropriedade. A poesia seria imprópria, isto é, não-adequada, distante do alcance e dos limites de qualquer propriedade, no duplo sentido que se esconde sob essa palavra: próprio, como se sabe, remete à posse e ao uso de um ser ou objeto, cujo fundamento se encontra no Direito, instância reguladora da propriedade privada e estatal; de outro lado, no entanto, próprio indica a identidade, a imagem que o sujeito tem de si, o acordo que se estabelece entre aquilo que se é e o que se pode (ou se deseja) ser. Nesse sentido, é ao vasto campo da Metafísica, e da Ontologia em particular, é que se liga o conceito.

Dividido entre essas duas instâncias, equidistante de cada uma delas, a poesia, segundo propõe Nancy, se constitui necessariamente na fuga, no deslizamento, no desencontro com todos os discursos, práticas e tradições que se cristalizam ao seu redor, buscando apreendê-la. Nem a reprodução infinita e alienada de si, como uma fórmula ou um gênero estanque, como quer a prescrição dogmática, nem a forma fácil e mercantil do texto leve, espécie de canção ligeira que teria o seu lugar (o seu nicho) entre os muitos produtos de uma sociedade de consumo: em qualquer dessas opções, o desencontro e a frustração às expectativas serão a saída da poesia, bem como uma potência de expansão permanente de seus próprios recursos, uma capacidade de sair de si e alargar os seus domínios técnicos e formais, assimilando modos, discursos e zonas de inserção que, antes, lhe eram alheias. É o que vai afirmar, em outros termos, Alberto Pucheu, chamando de “apoesia” (PUCHEU, 2014, p. 249) essa força-forma que têm os textos poéticos contemporâneos, segundo argumenta, de escapar aos liames convencionais e crescer, ocupando espaços e superfícies distintas de si. Concentrado nas pichações e intervenções urbanas como a street art e o graffiti, o crítico carioca busca apresentar como a poesia se constrói como uma noção ambígua, uma espécie de ‘campo de oscilação permanente’ (para falar com Derrida), na qual a condição poética se afirma e põe em xeque ao mesmo tempo, desarmando, com isso, os instrumentos críticos tradicionais ao demandar do leitor/observador do fenômeno poético um novo ponto de vista e uma maneira de compreender os seus objetos. Como se pode ver tanto em Nancy como no pesquisador brasileiro, é dessa condição desviante – dessa propriedade, se poderia dizer, trazendo à tona outro sentido ao mesmo termo – é que a poesia retira sua energia de invenção e crítica, sua capacidade de desestabilizar a língua e o saber.

Texto-em-fuga, a poesia caminha quase sempre para as margens e os limites da linguagem, do conhecimento, da pesquisa formal. Seu não-lugar essencial a leva, como ficou dito, continuamente a alargar o campo de possibilidades de sua inserção, fazendo com que, mais do que em outros modos e práticas de escritura, as definições de gênero não possuam a mesma força normativa ou equivalente capacidade descritiva. A poesia, nesse sentido, parece ecoar com enorme força as proposições de Jacques Derrida sobre o tema, especialmente expostas no ensaio La loi du genre. Ali, o filósofo vai propor que o gênero, qualquer gênero – literário, natural ou de natureza sexual, por exemplo – não deve ser entendido apenas como norma ou linha de corte, mas antes como memória e promessa, isto é, convite a um universo de possibilidades abertas e em devir, diálogo com tradições e formas passadas, verdadeira chave de reflexão sobre a impureza originária e fundamental da literatura, da poesia em particular. Procurando pensar em termos de uma ‘lei da lei do gênero’[1] (DERRIDA, 1986, p. 5) Derrida afirma que, em que pese a indicação ao resguardo e ao limite que a própria palavra gênero traz consigo, subjaz a ela, ao conceito mesmo de gênero, ‘um princípio de contaminação, uma lei de impureza, uma economia do parasita” (DERRIDA, 1986, p. 5) que assinala a condição de estranhamento a si, o desencontro que define a poesia: o que se espera e ordena que ela seja, em pura repetição, ela desvia e perverte; onde se espera que ela esteja e se confine, ela se expande ou se retrai, encontrando-se, preferencialmente, no paradoxo de um não-lugar, ou num ponto fora de si, em desacordo com origens, ordenamentos e instruções.

O mergulho decisivo em outras linguagens artísticas e modos expressivos, a frequentação às margens da linguagem, a condição mesma de impropriedade faz com que o fenômeno poético não se dê a ver apenas nos seus nichos tradicionais de circulação e consumo, historicamente a voz e o livro, migrando para outro suportes e diferentes gestos criativos, ou ainda que se feche no circuito de uma inscrição previamente dada, num espaço e forma textual que assinale, antes mesmo de sua emergência, o lugar que deve ocupar no mundo das letras e no vasto e intercambiável universo da leitura. O possível efeito de alargamento que aqui se pode ver e que no fundo está em jogo nas abordagens teóricas brevissimamente comentadas antes, não deve ser lido apenas como resultado (direto ou indireto) de uma crise do poético, ou ainda de um movimento de renovação e pesquisa estética vinculado ao Make it New! moderno, numa espécie de sobrevivência deslocada da inquietação vanguardista. O que se coloca de fato em questão tem a ver com a elaboração conceitual, no horizonte da nossa contemporaneidade, de um conceito que dê conta, a partir de diferentes solicitações e metodologias, de algo que se poderia chamar ‘literatura expandida’, para lembrar aqui o título e o eixo centra do livro de Ana Pato (Edições Sesc, 2012), resultado de sua pesquisa doutoral sobre a artista francesa Dominique Gonzalez-Foerster e suas relações e intertextos com o universo literário; ou ainda de uma ‘forma impertinente’, móvel e mutante, em incorporação permanente de materiais, linguagens e experiências não poéticas (ou não-literárias), conforme propõe, em mais de um momento, a ensaísta argentina Florencia Garramuño (p. ex. Frutos estranhos, 2014). O reconhecimento de que a paisagem literária se transformou e vem se modificando velozmente, impõe ao pensamento crítico a tarefa de lidar com novos objetos a partir também de novos instrumentos de reflexão, novo cenário de conceitos e formulações críticas que possam envolver a produção e a circulação de textos e objetos poéticos, lendo-os a partir das demandas que colocam e não apenas das perguntas que outras obras e outro horizonte de reflexão colocavam. Será portanto nesse esforço de avaliação e reproposição de definições que o presente trabalho pretende traçar, brevemente, algumas linhas sobre dois artistas brasileiros das últimas décadas: José Leonilson, nascido no Ceará, inventor de grande relevância na cena do fim dos anos 1980, desaparecido precocemente, em 1993, em decorrência da AIDS; e a carioca Leila Danziger, cuja obra melancólica e reflexiva vem chamando a atenção de crítica e público nas últimas duas décadas. Em ambos os autores (e no que vão propor as suas muito diferentes obras), procuraremos observar como a poesia (no Brasil contemporâneo, mas não só) tem escapado de seus modos e circunstâncias particulares e se expandido para diferentes modos discursivos e práticas artísticas, fazendo com que a ideia de um outro lugar, um quase impossível fora-de-si, seja uma imagem conceitual adequada para descrever, com alguma acuidade, parte significativa e problemática da cena poética do país.

  1. o desejo é um lago azul : José Leonilson

Um dos artistas mais celebrados do país nos últimos anos, tendo reconhecida a sua presença (e influência) na obra de artistas decisivos da cena contemporânea brasileira e mesmo do exterior, Leonilson fez parte, inicialmente, da chamada Geração 80, grupo de artistas que, em meados daquela década, retomaram o caminho da pintura e das artes visuais, criando, às vezes em ateliês coletivos, pinturas de grandes dimensões e de cores fortes, em contraste, de certo modo, com a tendência conceitual e minimalista da arte brasileira das duas décadas anteriores. Nomes como Nuno Ramos e Paulo Pasta, por exemplo, fazem parte dessa mesma constelação, que reunia artistas e projetos estéticos heterogêneos, mas próximos uns dos outros pelo entusiasmo juvenil e o uso (ainda que temporário) de certas mídias e linguagens. Bastante mais conhecido – e estudado – por sua atuação no campo das Artes Plásticas, Leonilson deixou uma vasta obra que, cada vez mais, vem chamando a atenção de críticos e pesquisadores de outras áreas do conhecimento, e da Literatura em particular. A incorporação da palavra escrita, seu uso e lugar particular nos trabalhos do autor (desenhos, gravuras, bordados, quadros de dimensões variadas e também um diário sonoro) dão margem a uma aproximação de campos e linguagens, deixando em aberto a possibilidade de ler a sua obra como gesto (também) literário, no qual dispositivos poéticos e narrativos se colocam em pé de igualdade, num certo sentido pelo menos, àqueles de natureza plástica e visual. Construída em torno a uma multiplicidade de formas, meios e linguagens, a obra de Leonilson sempre se afirmou como um espaço híbrido e impuro, no qual se mesclam a pintura de grandes dimensões, o bordado e a costura, pequenos desenhos, gravuras e instalações, nas quais matérias tão distintas quanto o veludo, espelhos, móveis e livros são usados de modo delicado e forte. Essa impureza de origem, a tendência à mescla de formas e texturas fez com que o artista pudesse trazer para dentro de sua obra registros escritos (e falados) muito elaborados, dentre os quais se destacam poemas intermidiáticos (onde se cruzam a palavra, o bordado e a pintura) e uma espécie de forma-diário, feita através do registro cotidiano da voz do artista, bem como das impressões sobre o cotidiano que ia distribuindo nas peças que foi compondo, diariamente, ao longo dos últimos anos de sua breve vida. Ler seus trabalhos a partir do arsenal crítico e teórico das Letras, da Teoria da Literatura especificamente, pode ser uma opção interessante, capaz de descortinar sentidos ainda pouco explorados da produção do artista cearense, mas já previstos pela primeira recepção crítica do autor: para lembrar apenas um exemplo, Lisette Lagnado (São tantas as verdades) chamará o autor de “pescador de palavras” (cf. LAGNADO, 1998), ressaltando o lugar muito particular da literatura, da poesia mais precisamente, em seus trabalhos.

Mesmo sem poder recorrer, num ensaio como este, à completude multimidiática das peças originais, a um exemplo dos usos e apropriações da linguagem verbal feitas por Leonilson – gesto criativo que traz em seu bojo um saber e uma formulação literárias – ainda que a forma do texto não possa mais ser descrita segundo os marcos teóricos (e de gênero) tradicionais da instituição literária. No belíssimo quadro intitulado “Todos os rios”, de 1988, o artista traz ao centro da tela/texto um conjunto de traços e linhas que formam, ao modo de um mapa de cores vivas, a imagem de rios que se encontram, em meio aos quais as palavras se acumulam e distribuem, ora evocando nomes de rios, ora trazendo inscrições poéticas. Transcrevemos o texto conforme a ordem de leitura espacial nos parece mais interessante:

Tietê

Confusão

Rio Grande

Todos os rios levam a sua boca

Piracicaba

Pardo

Paraná

Turvo

Fala mansa

Olhar fundo

Paranapiacaba

Jaú

Itu

Diana

(PEDROSA, 2015, p. 87)

            O procedimento linguístico (para além da força propriamente plástica da obra, aqui irrecuperável em todos os seus aspectos) obedece a um padrão curioso: em meio a substantivos próprios convencionais, que nomeiam rios brasileiros de tamanho e localização distinta, aparece um registro linguístico diverso, surpreendente, uma passagem lírica em que também se faz notar a presença do erotismo: “Todos os rios levam a sua boca”, um verso solto que vai se combinar com outras palavras e sugestões do texto/tela (“Confusão”, “Fala mansa”, “Olhar fundo”), todas elas convergindo para uma descrição enviesada, deslocada de fato, do desejo e das artimanhas da sedução. A armação do texto, que alterna registros e combinações linguísticas (a descritividade seca dos nomes e a complexidade sintática e metafórica do verso completo), irá também repercutir, de modo cumulativo e orgânico, na disposição visual da peça, que traz linhas convergentes, dentro das quais estão inscritos os versos da tela/texto, que se dirigem para um círculo em vermelho vivo no centro do quadro, aberto como uma boca, de onde saem todos os rios (e palavras) e para onde todas elas voltam. A construção conjunta do todo, o inseparável do texto e da imagem não subordinam uma linguagem a outra nem condicionam um gênero ou outro de atividade criativa. As palavras não são acessórios ornamentais específicos ou guias explicativos para as imagens que se formam à flor da tela: há relativa independência de registros, no que tange à elaboração do sentido, uma vez que, mesmo convergentes, o traçado e as cores podem ser analisadas, de modo parcial pelo menos, à incorporação e uso do registro escrito. É como se a letra viva, a palavra movente que persegue e estrutura tantos trabalhos de Leonilson, fosse uma espécie de suplemento (em sentido derridiano), um centro deslocado (e não transcendente) que não completa ou acrescenta um sentido incerto, mas amplia suas possibilidades ao criar uma nova zona autônoma de elaboração formal dentro da obra.

Assim como o que se pode notar aqui constitui-se como registro poético, outros textos/telas/objetos do artista possuem características e jogos formais similares. Referimo-nos a peças como “O pescador de pérolas” (1988), “Jogos perigosos” (1990) e “As cascas de ovo” (1992), para nomearmos apenas os bordados e as pinturas, deixando de lado as muitas gravuras e ilustrações do artista, todas elas costuradas em torno de palavras. Em “As oliveiras”, por exemplo, tela em aquarela de dimensões médias, o artista vai esboçar um salto mais amplo: ali Leonilson vai acumular palavras, sobrepor línguas e substantivos, construindo um texto no qual o verbal e o não-verbal são radical e materialmente inseparáveis, mas no qual o gesto literário se impõe com força e assertividade, nos fazendo refletir, inclusive, o que significa para o artista o gesto da escrita: nesse texto-tela, as palavras se espalham e acumulam, saltando por todos os lados, querendo dizer do sujeito, das suas impressões, das imagens que ele constrói a partir dos choques com o mundo. As listas, as anotações que se confundem com o desenho, que projetam desejos e sentidos sempre adiados e sempre presentes. A caligrafia e a pintura aqui são uma coisa só, escrever e pintar resultam do mesmo ato (a mão que traça linhas e produz rastros): trata-se de uma escrita que se faz antes com o corpo, que é traço material e físico do sujeito – além de circunvolução da inteligência –, incontrolável, ao que parece, como a respiração ou as batidas do coração. Nessa confluência entre o sujeito da escrita e objeto da criação, é possível notar que as muitas letras na tela se misturam em transparência às manchas de tinta, segundo a forma leve da aquarela, deixando ver através de si o poema (e o desenho) em primeiro plano, numa técnica compositiva que vai privilegiar, justamente, a fusão e a superposição – a existência, enfim, de dois ou mais corpos (linguagens, obras, gêneros) num só espaço.

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            Tudo o que importa aqui pode ser visto a partir de um imenso coração vermelho (nas proporções da tela), do qual saem vasos comunicantes (e que vão dar nos limites do papel e no materialidade das palavras, apontando para as linhas de fuga do corpo), em cujo centro oco uma mancha azulada se mistura ao desenho das letras, que em formatos diferentes se acumulam em relativa desordem pela obra. Numa superfície que lembra uma lista de anotações, Leonilson compõe fragmentos de poemas, pequenos versos dos quais se lê sempre apenas uma parte, mas que pelo acúmulo e pela repetição, ganham força. Os trechos manuscritos estão lado a lado com palavras em letra de forma, enumerando gestos de escritura e motivos recorrentes de seus trabalhos. A oposição entre termos de teor muito distinto, mas tantas vezes complementares como “sinceridade” e “perigo”, “liberdade e desejo”, por exemplo, constituem temas e palavras-chave centrais da obra do artista, além de apresentar uma constelação de conceitos e afetos que vão desaguar, nas listas e colunas seguintes, nos versos melancólicos que indicam, de modo descritivo, os estados contraditórios da paralisia, da afasia e do desconforto, nos quais o sujeito busca colocar-se, falar, mas não consegue tomar parte, equilibrar-se: “com as mãos nos bolsos/ sem saber o q. dizer”. A palavra grafada com mais intensidade, que se mostra como que em destaque em meio às outras, “NO” (não), uma forma direta e despojada de negativa, vai na mesma direção, dando ao quadro “As oliveiras” o tom ambíguo que o caracteriza, realização que permanece entre o poema e a forma-diário, o abertamente confessional e a recusa do contato, da própria vontade de se expor. Coração opaco, conjunto de anotações imprecisas, quase um exercício de escrita e de imaginação, a tela é síntese dos procedimentos criativos do artista, apontando também para outras questões que atravessam também o seu trabalho, como a relação com o diário, as narrativas de si que, em textos, telas ou gravações de áudio, ele foi construindo.

Ao seguir nessa direção, ainda e sempre à procura de pensar as intersecções do trabalho de José Leonilson com as formas e elementos literários, recordamos a proximidade de muitas das duas peças com a narratividade presente nos diários, forma de escrita/registro de si que o artista cultivou de diferentes maneiras ao longo de sua obra. Curiosamente, os diários de Leonilson (assim mesmo, no plural, para dar visibilidade ao seu caráter vário e intermidiático) constituem-se de fitas cassetes gravadas entre 1990 e 1993 – os anos finais do artista, quando a perspectiva da doença que o vitimaria, a AIDS, já se anunciava no horizonte primeiro como promessa fúnebre e logo, a partir do exame feito em 1991, como realidade sombria e devastadora – e de uma série de peças visuais em que se inscrevem em gravuras, quadros, desenhos e trabalhos de costura, os pequenos fatos de sua vida privada: as viagens, os encontros amorosos, os trabalhos que vai compondo, as preocupações com a família e a saúde, todos elementos que jamais serão registrados de modo documental e direto em sua obra, aparecendo, o mais das vezes, de modo elusivo e simbólico, ainda que a datação e os dados referenciais sejam reconhecíveis e até explicitados, como ocorre algumas vezes. Segundo Adriano Pedrosa, curador da exposição e do livro Truth fiction,

Os diários compreendem o desejo e sua incompletude, os sonhos, as ilusões, as relações amorosas, as paixões platônicas e aquelas não correspondidas, os caminhos do rapaz apaixonado, o coração, os amantes e os amados – reais ou inventados –, bem como os autorretratos, a fantasia, a sexualidade, os dias e as horas que passam, a doença (PEDROSA, 2015, p. 16)

E essa multiplicidade de temas e questões está materializada também nas muitas formas e materiais com os quais essa escrita do eu, essa narração continuada de si (que é também, como se sabe, invenção e performance permanentes de si) vão se dar ao longo das obras, convidando a uma leitura literariamente informada da mesma, de modo a mostrar como se revela pertinente ler o trabalho de Leonilson como uma forma expandida de exercício literário e de criação poética, conforme se pode ver, por fim, no quadro a seguir, de 1988, (que muito irá lembrar os bordados feitos pelo artista logo depois) puro gesto de escrita poético feito no suporte das artes plásticas, sem necessariamente – e essa distinção é importante – transformar-se exatamente num poema visual, como queriam, por exemplo, os poetas concretos de São Paulo.

tela

Mais do que constituir aqui apoio ou complemento às imagens que compõem a tela em questão, aqui é o próprio texto, a letra mesma do artista, a imagem, o centro sensível da obra. A cor, a disposição irregular das palavras, as marcas do pincel sobre o tecido, os fragmentos que compõem o poema, enfim, ocupam posição decisiva no quadro, que irá apresentar apenas mais uns pequenos desenhos junto ao texto (dois cetros brancos nas laterais, uma coroa no alto da tela e um coração rubro ao centro), sem dar a eles, no entanto, qualquer destaque no conjunto da composição. É o poema o que interessa ao artista, o gesto da criação literária, uma vez que, ainda que seja possível identificar certa estilização do traço e aguda consciência do espaço da tela, é o texto o que está em jogo, sobrevivendo e se impondo sem os recursos gráficos e estandartizados da Poesia Concreta, apresentando ao espectador convencional de uma exposição de artes visuais a cena da leitura como modo de percepção fundamental. Em que pese o uso da tela e do bordado, da moldura e do desenho, Leonilson age aqui fundamentalmente como poeta, cujos versos, no entanto, ultrapassam a fronteira do livro e da página para habitar o tecido, a parede, o interior de um museu.

à travers une brèche d’incompréhension: sobre Unerzählt, de W. G. Sebald — 27/01/2017

à travers une brèche d’incompréhension: sobre Unerzählt, de W. G. Sebald

O próximo número dos Cadernos Benjaminianos, publicação da Faculdade de Letras da UFMG, trará um dossiê bastante completo sobre a obra de W. G. Sebald. Até onde sabemos, será a primeira publicação do tipo no Brasil. Organizado pelos queridos colegas Kelvin Falcão Klein (UNI-RIO) e Maria Aparecida Barbosa (UFSC), o dossiê contém textos de pesquisadores brasileiros e estrangeiros, todos até agora inéditos no país. Dentre eles, publico a pequena resenha que segue, dedicada a pensar um livro pouco conhecido de poemas do autor, Unerzählt (Nã0-contado). Aos interessados, o texto:

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à travers une brèche d’incompréhension:

sobre Unerzählt, de W. G. Sebald          

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Unerzählt (Por contar, conforme a tradução portuguesa de João Barrento, ou Não-contado, na versão brasileira de Tercio Redondo) é um livro de poemas de W. G. Sebald lançado, depois do desaparecimento trágico do autor, em 2003. Constituído por uma série 34 poemas curtos, todos eles estão acompanhados por igual número de gravuras, de um realismo tão impressionante quanto incômodo, do pintor Jan Peter Tripp, representando apenas olhos, pares de olhos que se dirigem, direta ou indiretamente, ao leitor. A combinação dos dois registros, como sempre ocorre na obra do escritor, desperta um misto de fascínio e inquietação: inquirido obliquamente, o observador dessas imagens e desses textos projeta-se diretamente no mundo dos afetos daquelas figuras retratadas: a serenidade, o horror, a doçura, o vazio mesmo dos olhos que mal veem (ou já não veem nada, como talvez fosse o caso de Jorge Luís Borges, um dos personagens, por assim dizer, do livro) são imediatamente experimentados, numa forma curiosa, certamente ampliada, de endereçamento e partilha. Antes de entender a operação intelectual que tem diante de si, o leitor é solicitado, como que observado também, num jogo de espelhos que potencializa os efeitos simultâneos de reconhecimento e estranhamento que o conjunto vai suscitar. Some-se a isso, evidentemente, o corpo mesmo dos poemas, textos invariavelmente enigmáticos, muitos de forte teor melancólico, que parecem às vezes confirmar uma levíssima sugestão da imagem, quase que só um sussurro breve que o texto mais inventa e revela do que propriamente traduz; e outras tantas vezes os poemas tendem a entrar em franca dissonância com ela, num descompasso produtivo, que confere aos dois polos uma maior tensão, trazendo à tona aspectos insuspeitos da proposta armada por Não-contado.

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Veja-se, ainda que precariamente – posto que não será possível recuperar, no espaço deste texto, a riqueza de nuances, as linhas e sombras, a materialidade mesma dos traços de Tripp – um exemplo de cada um desses efeitos, aproximação (relativa) e diferença: o primeiro conjunto traz os olhos fixos, algo aflitos, estáveis mas com uma sombra indisfarçável de apreensão e gravidade, do pintor Francis Bacon; acompanhando-os, os versos que dizem (em tradução livre):

Em 8 de maio de 1927

os pilotos

Nungesser e Coli

decolaram de Le Bourget

e depois disso

nunca mais

foram vistos

(SEBALD, 2004, p. 33)

A desaparição dos aviadores, descrita aqui como uma tragédia em miniatura para qual não há explicação nenhuma, apenas a ausência completa, é apresentada pelo poema sem alardes, numa linguagem descarnada, sem adjetivos, que replica no texto a falta de entendimento possível da morte, que surge e se instala tantas vezes sem ruído, sem espalhafato. O tom melancólico do trecho se faz presente pela duração, por assim dizer, do evento: mesmo se a morte é certa, como racionalmente somos levados a entender, a sugestão de uma cena em movimento, como que ainda acontecendo, confere o tempo longo e lento, irremissível, característico dessa constelação afetiva. A ausência dos cadáveres e, por extensão, dos rituais públicos do luto, também são parte do processo: o olhar desolado de Bacon, a angústia concentrada que parece se guardar dentro dele coloca em pauta o desgaste de uma busca sem solução, o peso de uma certeza terrível que se instala mas não tem para onde ir. Ainda que não haja continuidade formal de qualquer natureza, os sentidos de uma linguagem repercutem na outra, multiplicando-se em solidariedade. Por outro lado, e em chave bastante diversa, tome-se o segundo poema do livro, citado a partir da tradução que dele fez Tercio Redondo:

As manchas

vermelhas

no

planeta

Júpiter

são

furacões

de

trezentos anos

(SEBALD, 2004, p. 21)

A imagem que lhe vai como par representa os olhos do escritor espanhol Javier Marías:

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Javier Marías
trata-se de um olhar claro, quase se poderia dizer neutro –fundamentalmente uma mirada calma, sem a urgência ou o fechamento em si (o mistério) que várias outras gravuras de Unerzählt. A sensação é a de um descolamento maior entre a imagem e o texto: a sugestão da violência e do desconhecimento oferecidos pelo poema não se confirmam na expressão dos olhos, no traço obscuro, mas ainda assim tranquilo, do artista. A beleza da fotografias espaciais que retratam Júpiter, o maior dos planetas do Sistema Solar, parece esconder alguma coisa desestabilizadora – eis o que poema nos informa – a força bruta de um turbilhão contínuo, fenômeno quase inimaginável na diminuta escala humana. Nada mais distante dos olhos estáticos e firmes de Marías, que se não sorriem também não são símiles da instabilidade e da derrisão.

w-g-sebald

Apesar das diferenças em jogo, Não-contado continua e aprofunda alguns dos elementos fundamentais, alguns dos procedimentos mais marcantes da restante obra literária do autor. A mistura inextricável entre texto e imagem, a presença densa da melancolia, o gesto ao mesmo tempo biográfico e autobiográfico – escrita que sempre se faz a partir de algum tipo de registro da vida do outro e de si, em franca conexão. Se não estão presentes o tom ensaístico e as grandes narrativas tecidas por Sebald em seus demais livros (mesmo nos poemas de Nach der Natur [Do natural, ainda sem tradução no Brasil], no fundo intrincados relatos atravessados pelo elemento lírico), neste conjunto de pequenos textos comparecem versos e frases lapidares, verdadeiro exercício de condensação no qual é possível perceber às vezes a ponta de dramas complexos, o corpo de narrativas em potencial que ficam assim, como território afetivo e convite à imaginação. Não será gratuito, nesse sentido, o título escolhido para o livro, Unerzählt: conforme a melhor indicação de seu sentido em português, feita por João Barrento (Por contar), há nele a promessa de circunstâncias a revelar, de fatos a vir à tona. Cada par de olhos (no fundo, portanto, cada vida individual, uma vez que a expressão e o contorno dos olhos são sempre distintos, inconfundíveis) guarda uma intrincada trama de experiências, lembrando a infinidade de universos – banais ou sofisticados – que existem, silenciosos, à volta de qualquer um. Nos olhos da própria filha, Anna Sebald – ela também retratada por Jan Peter Tripp no penúltimo dos textos do livro – o escritor vai localizar esse suplemento não-reivindicado de vida, essa indicação de uma narrativa (presumivelmente triste, como o olhar da moça aparenta ser) que resta:

                                         Por contar

                                                fica a história

                                                dos rostos que

                                                desviam o olhar

                                                (SEBALD, 2004, p. 81)

A tradução de Barrento acentua, como se pode notar, o aspecto fantasmático que também atravessa o projeto de Unerzählt. Os que ‘desviam o olhar’ existem anônimos e quase que sem vida, esquecidos pelo mundo, em certo sentido, mas lembrados tanto pelo poeta como pelo pintor, que se interessam, como nos seus outros livros e obras plásticas é possível perceber, por sujeitos invisíveis, por fotografias e objetos já sem uso, por aqueles, enfim, que existem fragilmente. Infelizmente inédito no Brasil, ao que tudo indica por desinteresse editorial mais do que por eventuais dificuldades com o espólio do escritor, Não-contado dá testemunho da força criativa de Sebald, servindo como síntese de procedimentos e expansão das possibilidades que seus demais trabalhos (ficcionais, ensaísticos, poéticos) guardam. O livro como que procura dar testemunho ainda do profundo desencontro que pode mediar a experiência da visão: assim como o escritor lembra, nas páginas finais do seu romance Austerlitz (2001), que os homens e os animais enjaulados parecem sempre se olhar ‘por meio de uma fresta de incompreensão’, nunca conseguindo reconhecer plenamente a vida e o espaço comum que partilham, nos poemas e imagens de Por contar a possibilidade da incompreensão, isto é, do silêncio, da invisibilidade, do fechamento ao outro, permanece ativa, não bastando apenas olhar os rostos ao redor, mas tentar penetrar o segredo que carregam, o apelo que endereçam a todos e a ninguém – um pouco como queria, quem sabe?, o filósofo franco-lituano Emmanuel Lévinas, para quem a face, os olhos do outro são abertura para a Ética e o afeto, a responsabilidade e o infinito.

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Jan Peter Tripp